Depois do luto, a luta - Época de lembrar daqueles que se foram

O Dia de Finados costuma deixar muita gente de baixo-astral por reviver o luto de quem se foi, mas o fundamental para reagir é dar o primeiro o

| CORREIO DO ESTADO / MARCOS PIERRY


DICA DE LEITURA. Estes dois livros também são recomendados por especialistas às pessoas que precisam ar pelo luto - Reprodução
publicidade

Cotações

No clássico do cinema “Um Corpo que Cai' (1958), dirigido pelo mestre Alfred Hitchcock, vemos Scottie (James Stewart) andar feito um zumbi pelas ruas de São Francisco, sem aceitar a morte da estonteante e aristocrática Madeleine (Kim Novak). 

De tão inconsolável, o detetive prefigura a bela amada em outra mulher, a morena Judy, também interpretada por Novak, que trabalha como balconista em uma loja de departamentos. 

Só que, além de levar uma vida de madame, Madeleine é o protótipo da loira. A partir daí, o que se a na trama é um jogo de revelação e de engano somente capaz de ser forjado por um gênio como o cineasta inglês. 

Mas se Scottie tivesse procurado um especialista em comportamento humano, teria ouvido que a fixação na amada que se foi surgira em decorrência do seu estado de luto.

É o mesmo diagnóstico enfrentado pelo casal de protagonistas de “O Quarto do Filho' (2001), do italiano Nanni Moretti, e também por Dona Guigui (Odete Lara) em “Boca de Ouro', de Nelson Pereira dos Santos.

A partir da peça teatral de Nelson Rodrigues, e tantos outros personagens que não param de ganhar as telas, os palcos e as páginas da literatura. 

Todos eles, assim como acontece na vida real, enfrentam o luto como podem, ou seja, nem sempre da melhor maneira. 

No Brasil, o diretor Cristiano Burlan filmou a “Trilogia do Luto', entre 2007 e 2018, para exorcizar a perda traumática da mãe, do pai e do irmão: “Construção' (2007), “Mataram Meu Irmão' (2013) e “Elegia de Um Crime' (2018).

Assunto talvez ingrato para uma data como a de hoje, quando as lembranças são mais recorrentes, o luto, palavra que vem de “lucto' (latim), deve ser tratado o quanto antes.

Embora não seja propriamente uma doença, pode ocasionar uma série de transtornos pessoais e prolongar o sofrimento do indivíduo desnecessariamente, deixando, aí sim, mente e corpo vulneráveis para quadros clínicos mais graves. 

Mas, para um especialista no assunto, o que é o luto exatamente?

“São perdas que causam alterações na vida de uma pessoa, acarretando, muitas vezes em prejuízos e alterações, principalmente nos funcionamentos emocionais e cognitivos', responde a psicóloga Sandra Haerter Armoa, professora e coordenadora de pesquisas da Unigran. 

O funcionamento cognitivo diz respeito à percepção, à atenção, à memória, à linguagem e a outras capacidades humanas que nos permitem agir com desenvoltura razoável dentro de determinados padrões de normalidade.

Luto e perda

Segundo a psicóloga, o luto está exclusivamente ligado à morte de alguém, e não a outras perdas. 

Entretanto, o psiquiatra britânico John Bowlby (1907-1990) ite que se trata de um processo natural que “ocorre em reação ao rompimento de vínculo' e pode, sim, estar associado a outros contextos, como o afastamento de ambientes de rotina habitual (trabalho, escola, vida social etc).

Uma frustração amorosa ou a morte de um bicho de estimação. Ao perderem contato com os seus donos, afirma a educadora, os animais podem ter esse tipo de sentimento.

“O luto normal é uma resposta saudável a um fator estressante que é a perda significativa de um ente querido', prossegue Sandra Armoa. 

“Quando se refere a uma resposta saudável, implica na capacidade de expressar a dor. Seja reconhecendo, reajustando e investindo em novos vínculos', continua.

Professora de neurociência e psicologia experimental, com atuação voltada para tópicos de terapia cognitiva comportamental, avaliação psicológica, prevenção e promoção da saúde.

Sandra explica que o luto é algo normal, e só se torna negativo quando a pessoa não tem recursos para lidar com ele.

Complicado

“É um processo inevitável de elaboração de uma perda', reforça a psicóloga, “e todas as pessoas que perdem um ente querido tendem a ar por isso.'

“Possui um vasto leque de sentimentos, de mudanças que invadem e interferem no funcionamento emocional. A pandemia fez com que ocorressem muitas perdas, e consequentemente muitos lutos', disse.

“Perdas repentinas refletem um grau ainda maior de dificuldades em relação a uma perda que pode ser, de certa forma, preparada.'

“Podem interferir a ponto de incapacitar a pessoa de ressolucionar [sic] esses problemas, de levar o indivíduo a desenvolver um funcionamento disfuncional como resposta à perda, como, por exemplo, o luto complicado', completa Sandra.

Se a pessoa não consegue sair do período de luto, ela se encontrará nesse estado do chamado luto complicado, possivelmente por não possuir recursos psicológicos próprios para o “bom enfrentamento'. 

Torna-se necessário, então, contar com ajuda – pessoal, terapêutica e espiritual – para segurar a barra. 

Na terapia cognitiva comportamental, uma das mais utilizadas no Brasil e nos EUA, o processo consiste em identificar os recursos disponíveis e avaliar quais são as principais preocupações do paciente.

“Em um primeiro momento, recomenda-se defini-las; por seguinte, priorizá-las; e, por fim, abordá-las, levando em consideração e avaliando a rede de apoio social e auxiliando na tomada de decisões, pois possivelmente o enlutado encontra-se em estados psicológico e emocional prejudicados', explica a professora.

Um dia de cada vez

No fim dos anos 1960, a psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004), lançou um estudo propondo a descrição do luto em cinco fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. 

A edição brasileira mais recente é de 2017, com tradução de Paulo Menezes, lançada pela Editora WMF Martins Fontes.

“O enlutado encontra-se em um estado frágil, vulnerável e desorganizado, tanto em níveis cognitivos como fisiológicos, motores e comportamentais', pontua a psicóloga.

“As alterações são fatores que podem dificultar o bom andamento do tratamento, prejudicando o funcionamento da terapia e sua meta principal, que é servir como uma facilitadora no processo de readaptação do indivíduo', detalha.

Um dos lançamentos recentes que abordam o tema é “Sobre Viver o Luto' (Editora Astral Cultural, 224 páginas, R$ 44,90, tradução de Cláudia Mello), da norte-americana Shelby Forsythia. 

A autora perdeu a mãe em 2013 e, desde então, vem se aprofundando no assunto, por meio de publicações e de podcasts. 

Seu novo livro tem a forma de um diário, com um pequeno texto sobre cada dia dos 12 meses do ano, em que Forsythia oferece desde lembretes, meditações e dicas práticas a pensamentos.

Isso de seus e de outros autores, de cunho filosófico e existencial que podem proporcionar novos olhares e, o mais importante, conforto durante o enfrentamento.

O luto não é um vício nem um obstáculo a ser superado, mas um processo que necessita de vivência para que a pessoa possa integrá-lo à própria realidade, fazendo com que a dor da perda possa se transformar, finalmente, em memória.

E o Dia de Finados, ensina Sandra Armoa, é um dia de saudade, não de luto. Para entender melhor, repare na reação do simpático vovô do desenho animado “Up – Altas Aventuras' (2009). Vai ajudar na hora de sorrir.



“Continue lendo”

Siga o Itaporã News no Youtube!

Hora a Mais com Lourdes Struziati

Grupo do WhatsApp do Itaporã News Aberto!

WhatsApp. VIP do Itaporã News clicando aqui!"

WhatsApp do Itaporã News, notícias policiais!

"Ao vivo a programação da Alternativa FM de Itaporã."